Creio que os fazedores de opinião têm como objecto uma faixa definível das massas.
Faixa essa que deve ter num dos extremos (no extremo por serem os detentores de mais carimbos e certificações) os licenciados analfabetos. É uma crença minha, nada mais.
Os fazedores de gosto ou de gostos terão mais ou menos o mesmo universo à espera da sua doutrina. Outra crença minha.
Uma pessoa, como Lu Isgui Lherme, que testava teórica e afanosamente diferentes receitas de arroz de nêsperas no final do terceiro quartel do século passado e era um incondicional de Gatão e de Lagosta, consoante as disponibilidades caseiras, estaria naturalmente fora do público esperado por quem escreveu as linhas que a seguir se reproduzem. Ainda que se mostrasse dogmático no arroz e nas nêsperas. Não tanto nos verdes, como se viu.
frases atribuídas a Bruno Antunes, revista Share, edição de Março / Abril de 2013, p. 39
(distribuída com o Expresso) - clicar para ampliar
As temperaturas são o ponto mais decisivo.
Não há portanto nada mais decisivo na apreciação de um vinho do que a temperatura a que se encontra.
Aquela ideia de agarrarmos numa garrafa de vinho tinto para a pôr junto à lareira.
A que distância da lareira? Durante quanto tempo? A partir de que temperatura inicial?
Não façam isso.
Dogma ou conselho peremptório? Se alguém gostar justamente de aquecer vinho tinto à lareira não o deve portanto fazer. Não somos elucidados sobre outras fontes de calor. Sequer sobre outros vinhos além do tinto.
É mentira que o vinho tinto seja o melhor para [acompanhar] queijo.
É mentira – estamos no plano das verdades absolutas, dos dogmas. É mentira.
Luís Filipe Vieira diz muito melhor coisas destas.
Vinhos brancos mais ácidos, e até vinho do Porto, são excelentes combinações para certos queijos.
Não suscita comentários. A cada um o seu gosto.
Assumir que o bacalhau só se bebe com vinho tinto é incorreto.
Descontando a novigrafia e a possibilidade de o bacalhau ser ou não bebível (claro que é – é só fazer sumo de bacalhau), concordo com o homem, qualquer insinuação sobre o que o indígena deve ou não deve ingerir combinadamente (com a excepção de venenos, aberta para os nossos amigos) é incorrecta. De acordo, portanto!
Os brancos mais leves tendem a ser dominados pela intensidade deste peixe, ao contrário do que acontece com os brancos mais encorpados.
Presumo daqui que a intensidade de um gosto (que é uma noção entendível) e não de um peixe, soçobra com a falta de leveza de um vinho. Há que esclarecer porém o que é a leveza de um vinho até porque aqui se graduam em leves e encorpados - é a densidade? Não o sendo, é a intensidade do sabor? É o quê?
Dois gostos muito intensos anulam-se? Ou há sempre um que é dominado e outro que é dominante?
Dizer que existe vinho branco para peixe e vinho tinto para carne é errado e está fora de moda.
Todo um tratado. O certo, o errado e o fora de moda.
Certo e errado são valores que só existem nas convenções. E as convenções mais respeitáveis (como a matemática e jogos de mesa) não mudam o certo e o errado. As menos respeitáveis, como as da ortografia e do pontapé na bola, fazem-no.
O fora de moda nada significa para as convenções respeitáveis mas é significante para as convenções volúveis.
Concluo daqui que a convenção branco / peixe, tinto / carne não é respeitável e está caduca por falta de uso.
O gosto de cada um, como se percebe, não interessa nada. Significa que estas linhas são destinadas àqueles cujo gosto não conta ou não têm mesmo gosto próprio, seguindo o gosto alheio, desde que exposto em letra de imprensa ou filtrado pelos microfones da rádio ou da televisão.
Constituem uma delícia esta série de sentenças e arrazoados impenetráveis e cimentam ainda mais a minha impressão de que o paroxismo da irracionalidade se encontra associado aos entendidos em vinhos.
Ainda que a concorrência seja assanhada por parte de outras classes.
Lu Isgui Lherme: se acaso um dia pesquisares por tal pseudónimo e aqui vieres dar, tenho saudades de beber contigo um Rosé Rosal adamado com agulha.