Terça-feira, 12 de Outubro de 2004
Liberdade


A insatisfação é natural. É ela que faz mover as coisas. É um ímpeto lá do dentro da vida.
É eterna, tanto quanto a podemos entrever nos relatos que conhecemos.
Se não existisse, não estávamos aqui todos a escrever linhas, à espera que nos leiam.
Andássemos todos muito satisfeitinhos e tudo parava. Nem os comboios seriam objecto do tal movimento residual que nos prendesse o olhar.
É bom que se clame, é bom que se proteste, é bom que se caminhe. Não é bom, é inevitável.
A energia acumula-se e dissipa-se, os ciclos são assim mesmo, tanto quanto nos parece que sabemos.
Quando forem de mais os gritos, os protestos, a coisa acalma de alguma forma. Por cansaço ou por catástrofe.
Se a observação das coisas nos ensinou algo, esse algo é que não devemos esperar coisas novas. Apenas formas diferentes.

Hoje, fala-se muito de liberdade.
Fala-se muito de pressões, de constrangimentos.
Confunde-se, às vezes, com licença.
Confunde-se, às vezes, com a possibilidade de tudo dizer e fazer.

Posso dizer que sou, em certos aspectos, um privilegiado.
Não tenho que cumprir ordens, aceder a desejos, fazer favores, pedi-los a outrem.
Mas será que não?
O facto de não ter chefes ou patrões, clientes, no sentido regular do termo, disciplina a que me submeter, partidária ou outra, carreira a construir, metas a atingir, faz de mim livre?
Provavelmente, dirão que sim.
A minha liberdade é o que eu fizer com ela.
Escrevo aqui. Limitei a minha liberdade de comentar em troca de manter o anonimato.
Foi um negócio que fiz comigo mesmo. Em nome de uma coisa qualquer chamada ética, dignidade, consciência, qualquer coisa que vos pareça. Ou não. Ou apenas do não me chateiem, comodista e associal.
Outros negócios faço com os meus botões, preservando sempre a liberdade de não ter liberdade.
É que ela, a liberdade, não é de facto um valor absoluto.
E se não o é, para mim, que reconheço ter poucas ou nenhumas razões para dela abdicar, o que será para quem tem, inevitavelmente, que se submeter a estas ou aquelas circunstâncias redutoras?
Uma ilusão? Talvez não passe disso mesmo.
Às vezes digo, e que me perdoem os mais terra-a-terra, que liberdade seria poder ter a possibilidade de me apaixonar por todas essas mulheres extraordinárias que existiram, século após século, desde que por aqui andamos. Ou por aquelas que hão-de vir.
Mas estou preso aqui, nestes dois séculos em que a minha vida decorreu e decorrerá, nada posso fazer a esse respeito.
Limitei-me assim às coetâneas. E procurei não fazer disso uma insatisfação permanente.
E posso dizer isto? Posso dizer uma coisa tão disparatada quando o mundo precisa de soluções para problemas gravíssimos?
Se calhar, não devia. Mas a verdade é que o mundo anda no tempo e permite novas formas à matéria velha, a partir da combinação de todas as coisas.
Não há nenhuma vontade que, sozinha, mude seja o que fôr.
Mas todas em conjunto, desde as mais disparatadas às mais consequentes, lá fazem a sopa.
E cada um puxa a brasa à sua sardinha.
Ou não será assim?

P.S. - Quando eu penso mais um bocadinho, chego sempre à mesma interrogação a que outros já chegaram: Dizer coisas? Para quê? O único relógio que dá as exactas horas é o que está parado. E fá-lo duas vezes ao dia, ao contrário de todos os outros, que sempre se afastam da hora certa.


por MCV às 14:57
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2 comentários:
De Anónimo a 12 de Outubro de 2004 às 18:26
Ah, ah, ah. Abraço, amigo.
Manuel
</a>
(mailto:gasolim@hotmail.com)


De Anónimo a 12 de Outubro de 2004 às 17:47
E eu quero ver se deixo mesmo de usar relógio :) Abraço, Manuelyardbird
(http://novosvoos.blogspot.com)
(mailto:yardbird25@netcabo.pt)


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